A Viola Toeira-Novos dados sobre a sua Função, Construção e Temperamento.

O cordofone actualmente designado por “Viola Toeira” é um modelo de fabrico tradicional das regiões da Beira Litoral e Beira Alta, pertencente ao sub-tipo das violas de arame da família das guitarras hispânicas, largamente difundidas desde o século XVI no espaço ibérico e em Itália (Chitarra Battente).
A adopção deste modelo por parte da população de Coimbra permanece um Mistério de difícil resolução, dada a escassez de informação sobre as práticas musicais populares da população civil da cidade anteriores ao século XVIII.
A existência da obra de Manuel da Paixão Ribeiro “Nova Arte da Viola” datada de 1789 e onde se refere a prática de encordoamento com arame metálico, em alternativa ao tradicional uso de cordas de tripa, não é por si só documentalmente probatória do uso popular da Viola Toeira antes do dealbar da primeira metade do século XIX.

 1- A sua função musical e a sua técnica particular, ainda que em fase de investigação mais aprofundada, indiciam uma utilização principal como instrumento de acompanhamento fornecendo uma base harmónico-rítmica às formas vocais e instrumentais de carácter lúdico e festivo e excluem-na de quaisquer funções solísticas e rituais (religiosas ou profanas).
Os dados até agora recolhidos em testemunhos escritos e orais comprovam a associação deste modelo a contextos festivos tradicionais da região de Coimbra e, nomeadamente, às formas vocais-coreográficas do Vira de Coimbra e do Estalado, entre outras.
O uso da técnica de rasgado, com utilização dos dedos maiores da mão direita e com a percussão intermitente do dedo polegar sobre tampo harmónico colocam-na a par com o modelo em uso na Ilha do Pico, Açores, onde esta técnica ainda persiste.
O conhecido registo discográfico de Raul Simões e Estrela Abrantes, bem como os testemunhos orais gravados por Ernesto Veiga de Oliveira, são documentos inegáveis dessa tradição e desmentem um conjunto de mitos gerados pela moderna pseudo-investigação de amadores e curiosos, defensores de um regionalismo bacoco, sem base histórica nem conhecimento organológico, o que deve ser objecto de crítica.

2-O sistema construtivo geral da Viola Toeira é comum aos restantes modelos em uso no espaço continental e insular português e expandiu-se para as antigas colónias de Cabo Verde e do Brasil.
Graças ao recente trabalho de restauro de exemplares históricos das colecções do Museu Nacional da Música e de diversas colecções particulares, realizado pelo Mestre Violeiro Orlando Trindade em colaboração estreita com o investigador Pedro Caldera Cabral, foi possível analisar um conjunto de particularidades construtivas no cavalete do modelo coimbrão da viola de arame, as quais  apresentam algumas características arcaicas que se refletem no funcionamento mecânico e vibro-acústico do instrumento, conferindo-lhe características distintivas dos restantes modelos de violas de arame.
A construção do cavalete da Viola Toeira, com um desenho bastante uniforme em instrumentos de violeiros diferentes como António dos Santos, Augusto Nunes dos Santos, Bento Martins Lobo, António de Sousa ou Armando Neves, contém um segredo só conhecido e praticado por este grupo de violeiros e, actualmente, esquecido e negligenciado pelos modernos reprodutores do instrumento.
Trata-se de uma peça de madeira em forma de arco, com um corte transversal prismático invertido, provido de canais na superfície interior (ductos de perfil trapezoidal) e que esconde a verdadeira pestana (que marca o comprimento vibrante da corda e define a montagem das cordas com uma distância de ca. de 2,5 mm em relação ao tampo harmónico) realizada com um arame de alpaca transversal por  baixo do qual passam as cordas de arame encaminhadas pelos canais e presas a pinos de arame de alpaca ou de latão cravados na face do cavalete.
À peça central, realizada normalmente em pau-santo adicionam-se os “bigodes” com motivos fitomórficos estilizados colados de cada lado do cavalete.
A utilização de um contra-cavalete, tantas vezes hoje aplicado nas reproduções modernas da Viola Toeira, descaracteriza a identidade particular deste modelo e altera-o nas suas características tímbricas e nas funções para que foi concebido.

3-Nos exemplares mais antigos foi possível detectar, a par com o uso de um temperamento  “em tons meãos” ou mezzatónico (com meios tons maiores e menores) um temperamento igual, isto é resultante da aplicação de um logaritmo aritmético.
No primeiro caso, comum a outras práticas ancestrais aplicadas nas cítaras, nas bandurras e nos orpharions desde o século XVI, calcula-se o primeiro traste dividindo o comprimento vibrante por 17 e , em seguida, o restante comprimento vibrante por 18 e, sequencialmente repete-se a mesma prática ,assim se obtendo um meio tom maior e outro menor em toda a escala. Esta prática, hoje totalmente esquecida, conferia características muito particulares a este modelo e adequava-se ás formas musicais tradicionalmente cantadas e tocadas à Viola Toeira.

4-É também importante salientar as vantagens do uso de cravelhas com eixo cónico de madeira (dispensando os modernos sistemas de “ carrilhão” metálico) não só pela correcta distribuição do peso no braço do instrumento, mas também pelas características de estabilidade mecânica e consequente permanência da pressão longitudinal das cordas. Igualmente temos que referir  aqui razões de natureza vibro-acústica, pois estes materiais com funções mecânicas são também parte de um conjunto operativo funcional com contributo no resultado sonoro final do instrumento.

Texto por Pedro Caldeira Cabral

Viola Toeira de Augusto Nunes dos Santos restaurada por Orlando Trindade em 2022

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ORLANDO TRINDADE - VIOLEIRO / LUTHIER

Orlando Trindade tem-se dedicado à construção e restauro de cordofones, com especial interesse pelos instrumentos antigos.

 

Desde o ano 2000 que estuda e colabora com músicos, investigadores, musicólogos e outros construtores, sempre com o objectivo de realizar o melhor trabalho possível no domínio da reconstituição histórica deste património.

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